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Ucrânia, apoios políticos e enquadramentos da cobertura jornalística nos EUA

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Ucrânia, apoios políticos e enquadramentos da cobertura jornalística nos EUA

ARTIGOS 29 de setembro de 2025
Ucrânia, apoios políticos e enquadramentos da cobertura jornalística nos EUA www.freepik.com

Desde o início da guerra na Ucrânia, em fevereiro de 2022, o framing predominante do debate na imprensa americana é (sem surpresa) que se trata de uma “guerra de agressão russa”, ou de uma “invasão russa” do país. Há um destaque reincidente para o caráter contínuo e devastador do conflito e para a recorrência de temas como crimes de guerra, a resiliência ucraniana e a ameaça que o avanço russo representa para a segurança europeia e para a ordem global. Após um breve levantamento do material recente publicado/veiculado por alguns dos principais veículos midiáticos tradicionais dos Estados Unidos, o que se observou é que há um relativo consenso quanto à origem e à natureza do confronto. Esse enquadramento acontece independentemente da linha editorial e do posicionamento político dos veículos consultados. As distinções aparecem na escolha das pautas e dos políticos e analistas entrevistados, no recorte dos temas, na construção dos personagens e das matérias especiais, ou ainda, na intensidade ou na insistência com que certos assuntos são abordados. Esclareço que isso não significa dizer que as abordagens são excludentes, mas, tão-somente, que algumas ideias são mais vocalizadas aqui e ali. 

Enquanto alguns dos jornais mais tradicionais (como The New York Times e The Washington Post) reforçam o contraste entre uma Rússia “agressora” e uma Ucrânia “vítima”, outros (como The Wall Street Journal) desenvolvem argumentos sobre a urgência de se enviar mais armamentos para o país e de se retomar/normalizar as parcerias estratégicas dos aliados europeus. Abundam críticas a Donald Trump por “abandonar a Ucrânia” e por sua relação “pouco firme” com o presidente Vladimir Putin, como mostra o acompanhamento da cobertura da cúpula do Alasca e das negociações para um cessar-fogo e, espera-se, um acordo de paz. Temos ainda, na direção contrária, aqueles veículos mais representativos da mídia conservadora trumpista (como a emissora Fox News), que ressaltam os custos para os EUA e para os contribuintes americanos decorrentes da manutenção desse apoio. Seguindo essa mesma linha, repete-se que os aliados europeus devem fazer e assumir mais em termos militares e de segurança – tanto no que diz respeito a esse conflito, em específico, quanto à segurança continental, em seu conjunto. 

A ambiguidade proposital de Trump 

De certo modo, a postura recorrente e claramente ambígua do presidente americano sobre a guerra favorece e facilita essas diferenças de análise. Esse comportamento não seria aleatório. Trump anseia ter um protagonismo diplomático e usar o fim da guerra como a prova cabal de sua relevância para a estabilidade internacional (em que pesem as evidências contrárias) e de sua capacidade de negociação (quem sabe pensando em ser agraciado e reconhecido com o Prêmio Nobel da Paz). Trata-se, ainda, de 1) buscar se aproximar da Rússia para distanciá-la da China, visando a isolar e enfraquecer seu declarado grande rival e competidor global; 2) uma forma de agradar a sua base eleitoral MAGA, que não quer mais gastar seus poucos dólares americanos com outros países e seus problemas; e 3) distanciar-se da política externa de Joe Biden. No caso do democrata, apesar de ter-se empenhado na demonstração de seu apoio à Ucrânia – com imposição de sanções a Putin e concessão de ajuda e armamentos a Kiev, por exemplo –, o balanço de sua gestão nessa temática (e na política externa como um todo) não foi direta e proporcionalmente tão generoso por parte dos analistas. 

A oscilação de Trump é acompanhada e reproduzida pela imprensa. Em fevereiro deste ano, por exemplo, os Estados Unidos votaram contra uma resolução da ONU, condenando a Rússia pela guerra. Trump chegou a culpar a Ucrânia pelo confronto e reduziu-lhe drasticamente a ajuda militar e financeira, um duplo movimento que deixou clara a linha vermelha de muitos de seus colegas de partido. Também intensificou as reclamações com a Otan e com os colegas europeus sobre o peso dos gastos dos EUA e a pouca contribuição dos aliados, além de sugerir ao presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, que aceitasse fazer concessões de território a Putin. No outro lado da moeda, despachou seu enviado especial Steve Witkoff para mediar conversas, ameaçou impor tarifas de até 100% a aliados comerciais da Rússia (como Índia e China), reposicionou submarinos nucleares para águas próximas à Rússia e prometeu voltar a enviar armas, por meio dos europeus. A lista de exemplos é longa e, para o propósito deste texto, não se faz necessário me estender nela. 

Os políticos americanos no debate sobre a Ucrânia 

Também ganha espaço nas páginas noticiosas a divisão na política doméstica, notadamente, no Congresso. Alguns nomes surgem com frequência, em defesa de uma maior ou menor assistência à Ucrânia e de um maior ou menor enfrentamento em relação à Rússia. De novo: de um modo geral, o que é posto em xeque não é exatamente o apoio à Ucrânia, mas por quais meios e com qual amplitude isso pode ser feito. Outro ponto é que, qualquer que seja o grau, a adesão à Rússia não é uma das alternativas presentes no debate político nos EUA. Esta semana, por exemplo, no dia 19 de agosto, o líder da maioria no Senado, o republicano John Thune (R-SD), declarou que a Câmara Alta está preparada para impor sanções à Rússia, de modo a mantê-la na mesa de negociações. 

Acompanhados de uma parcela dos republicanos mais tradicionais (autointitulados neoconservadores ou não), os democratas são os que se manifestam mais claramente a favor do apoio à Ucrânia. Em geral, os congressistas democratas acusam o presidente Donald Trump de “negligência” e de “enfraquecer a Ucrânia”, país para o qual solicitam o envio de mais armamentos. Também pedem sanções duras contra a Rússia e criticam a aproximação de Trump com Putin. O argumento principal parte do entendimento de que a derrota da Ucrânia pode encorajar novos ataques, por parte da Rússia ou de outros “regimes autoritários”, e que a estabilidade global (ainda) depende de uma postura firme dos EUA. Aqui, temos um velho e conhecido axioma do internacionalismo liberal escanteado por Trump e que, mesmo em governos democratas, ficou, muitas vezes, no bonito plano das ideias: o de defesa da democracia e da soberania das demais nações contra a agressão de potências tirânicas. 

Em sua maioria, os correligionários do presidente defendem sua abordagem “pragmática” – o que, na prática, tem-se materializado nas idas e vindas mencionadas na seção anterior. As divergências recaem sobre como lidar com Putin, a possibilidade de uma intervenção direta no palco de guerra e o envolvimento dos EUA em conflitos no exterior. É o caso de alguns dos falcões republicanos tradicionais, como o senador Mitch McConnell (R-KT), um dos políticos de mais alto ranking a defender a Ucrânia e que instiga um papel mais assertivo dos Estados Unidos no mundo e um orçamento mais polpudo para o Departamento da Defesa. Entre outros republicanos que pedem sanções mais rigorosas contra a Rússia e aumento da assistência militar ao país, podemos citar os senadores Lindsey Graham (R-SC) e Lisa Murkowski (R-AK), e o ex-vice-presidente dos EUA Mike Pence, hoje um desafeto de Trump. 

Embora não seja majoritário, um outro grupo ganhou fôlego com o retorno de Trump à Casa Branca. Seus adeptos alegam que os Estados Unidos devem se concentrar em seus próprios problemas domésticos e em seus eleitores. Além de criticarem os altos custos do apoio à Ucrânia, veem a guerra como uma questão europeia, convocam a Otan a assumir o papel de liderança e sugerem que a atenção e a preocupação dos EUA devem se dirigir para outras áreas, como a Ásia, mais especificamente, a China. Enquanto os republicanos de tendência mais “isolacionista” têm como prioridades as negociações diretas e a redução de gastos militares em confrontos que “não são dos EUA”, os trumpistas da ala “America First” preferem a pressão econômica (na forma de tarifas, ou sanções, como se deve chamá-las) em vez do envolvimento militar.  

Crítico aberto da ajuda à Ucrânia, o vice-presidente J.D. Vance já se declarou contrário a qualquer envolvimento prolongado, defendendo que sejam feitas negociações com concessões para se obter um rápido encerramento do conflito. Por sua vez, o secretário da Defesa, Pete Hegseth, rejeita a entrada da Ucrânia na Otan e defende uma segurança europeia independente dos EUA. Também é favorável às concessões, incluindo territoriais. Qualquer que seja a preferência e o argumento, há uma obliteração da longa linha do tempo que nos levou ao estado atual das coisas, um trajeto em que, mesmo sem um esforço interpretativo e analítico exaustivo e profundo, observamos a presença, o peso e a (cor)responsabilidade dos EUA. 

O debate sobre a guerra na Ucrânia vai, portanto, para além do conflito em si. E coloca falcões democratas e republicanos eventualmente do mesmo lado. Deixo aqui três exemplos dessa convergência conveniente, que não é nem um pouco episódica. O primeiro deles: em abril, os senadores Lindsey Graham e Richard Blumenthal (D-CT) apresentaram um projeto de lei para endurecer as sanções contra a Rússia, com o apoio de 85 senadores. Outro esforço bipartidário recente foi o projeto apresentado no Congresso pelas senadoras Jeanne Shaheen (D-NH) e Lisa Murkowski, no final de julho, propondo o fornecimento de mais US$ 54,6 bilhões em ajuda à Ucrânia nos próximos dois anos, em meio ao fracasso, até o momento, das negociações de paz mediadas pelos EUA. O terceiro exemplo é o artigo de opinião “How to ensure America is ready for the next war”, publicado por McConnell e pelo senador democrata Chris Coons (D-DE), no jornal The Washington Post. Nele, ambos propugnam a aplicação de uma postura externa tradicional forte no caso ucraniano. Trata-se, portanto, de uma disputa política interna sobre a liderança global dos EUA e sobre como devem agir para manter seu lugar no mundo. Acontece que essa discussão se dá tendo como base e premissa um tipo de organização e estrutura de mundo que não existe mais e, talvez, nem volte a existir. 

A cobertura dos protestos de julho na Ucrânia 

Em julho deste ano, pela primeira vez desde o início da guerra, milhares de ucranianos foram às ruas protestar contra o governo, após o presidente Volodymyr Zelensky sancionar um polêmico projeto de lei. O texto aprovado pelo Parlamento da Ucrânia (Verkhovna Rada) e enviado para o Executivo concede a supervisão de duas importantes agências anticorrupção – o Gabinete Nacional Anticorrupção da Ucrânia (NABU) e a Procuradoria Especializada Anticorrupção (SAPO) – ao procurador-geral, um cargo eminentemente político. Críticos do projeto afirmam que ele restringe a liberdade de atuação de ambos os órgãos, ao conferir ao procurador-geral o poder de influenciar investigações e de arquivar casos. Entendem, com isso, que a medida pode vir a ser um potencial obstáculo para a adesão do país à União Europeia, já que uma das exigências do bloco é que o país adote “fortes medidas anticorrupção”. Embora tenha sido eleito em 2019 com a eloquente promessa de combater a corrupção, denúncias nesse sentido surgiram nos últimos anos contra algumas das principais autoridades do país, incluindo vários de seus aliados próximos. Na tentativa de conter danos, Zelensky agiu rápido, anunciando o envio de um novo projeto ao Congresso para garantir a independência das duas agências. 

Retomando o exercício que motivou este texto, observou-se uma clara diferença de abordagem entre os veículos tradicionais considerados mais representativos do mainstream liberal e aqueles mais conservadores. E, não à toa, esses distintos enquadramentos da cobertura do evento ucraniano têm uma relação bastante direta com a natureza do alinhamento político do veículo jornalístico e com a maneira de enxergar o tipo de inserção e de papel que os EUA devem ter no mundo.  

No primeiro grupo mencionado, as matérias ressoaram preocupação com o “futuro democrático da Ucrânia”. Jornais, como The New York Times e The Washington Post, emissoras de televisão, como a CNN, e agências de notícias, como a Associated Press (AP), trataram os protestos sob uma lente mais crítica, concentrando-se, sobretudo, em pautas como o enfraquecimento das instituições democráticas; o retrocesso na luta contra a corrupção e a tensão entre segurança e liberdades; a lei de controle sobre agências anticorrupção e o caráter autoritário da iniciativa de Zelensky e do Parlamento; o risco para a adesão à UE; e a reação da sociedade civil. Aqui, a narrativa predominante é que os protestos de julho de 2025 foram um teste crucial para a democracia ucraniana e que, mesmo em situação de guerra e sob lei marcial, o país “não pode abandonar” os princípios democráticos que justificaram o apoio de potências ocidentais. 

Reproduzindo a mesma dicotomia antagônica descrita anteriormente, esses jornais adotaram, em geral, um tom moralizante, opondo a heroicização ucraniana (“manifestantes em defesa da democracia europeia”; “protestos como prova de vitalidade democrática”) à vilanização da Rússia (por suas ações “deliberadas” e “bárbaras”, em especial, os ataques contra civis). Sobre as relações bilaterais, os protestos também aparecem 1) relacionados com as tensões entre a Ucrânia e o governo Trump, que condicionou a ajuda militar ao país à assinatura do acordo de mineração e do Fundo de Reconstrução com os EUA, e 2) como um motivo de preocupação para investidores americanos, no que diz respeito à estabilidade política e social do país. 

No caso de veículos conservadores, como a rede Fox News, as manifestações foram vistas como uma oportunidade – tanto para legitimar o discurso “isolacionista” à la Trump e validar sua postura “cética” em relação ao apoio irrestrito a Kiev quanto para questionar a política externa dos EUA do governo Biden para a Ucrânia. A esse respeito, sugiro a leitura da reportagem investigativa “The Partnership: The Secret History of the War in Ukraine”, de Adam Entous, publicada em 29 de março deste ano no jornal The New York Times. O texto expõe a real extensão do envolvimento dos americanos no conflito irrompido durante a Presidência democrata – e que é bem maior do que foi publicizado oficialmente. 

Assim, nesse segundo grupo, ganharam espaço analistas e políticos críticos da assistência financeira e militar, com destaque para os riscos de se manter essa ajuda e para o argumento de que os EUA “não deveriam estar gastando dinheiro dos contribuintes americanos” com um governo que não é “totalmente transparente”, não se apresenta como um “parceiro confiável” e/ou que tem “problemas internos de corrupção”. 

Framing: enquadrar para organizar e dar sentido 

Por que trazer a questão do framing (ou “enquadramento”) na cobertura jornalística da guerra na Ucrânia? Porque, entre outros pontos, a maneira como um determinado conflito é retratado nos jornais pode influenciar a opinião pública doméstica dos países envolvidos a se posicionar contra/a favor de mais/menos apoio, pressionando a classe política e suas decisões. Ressalto, contudo, que esse tema não é um debate pacificado em seu campo de conhecimento específico, visto que os jornais tanto podem influenciar, quanto serem influenciados, refletindo um humor, sentimento e percepção crescentes ou já instalados em uma dada sociedade.  

De qualquer modo, há bons trabalhos na área de Estudos de Mídia e Comunicação sobre, por exemplo, a cobertura da Guerra do Vietnã feita pelo jornal NYT antes e depois da divulgação dos Pentagon Papers e a evolução do apoio da população americana; ou sobre a cobertura midiática e a mudança do apoio às guerras que vieram na sequência do 11 de Setembro. Ainda sobre a cobertura jornalística de conflitos recentes, seus vieses e engajamento seletivo, sugiro a leitura do texto “Headlines and Front Lines: How US News Coverage of Wars in Yemen and Ukraine Reveals a Bias in Recording Civilian Harm”, de Esther Brito Ruiz e Jeff Bachman, publicado no site The Conversation, em 3 de agosto de 2023. Oportuna também é a consulta às obras Manufacturing Consent: The Political Economy of the Mass Media, de Noam Chosmky e Edward S. Herman (The Bodley Head 2008), e Política Externa na Era da Informação, de Leonardo Valente (Editora Revan, 2007). Ambas ajudam a entender o funcionamento, a estrutura e os interesses dos mais poderosos conglomerados midiáticos do mundo e como tudo isso fabrica ou implode consensos. 

Voltando ao recorte específico deste texto, a identificação dos framings mais recorrentes ajuda a expor um traço característico do jornalismo que vai no sentido contrário de um de seus mitos fundacionais mais caros, valorizados e repetidos: o da objetividade e da neutralidade do material produzido, de quem produz e do veículo responsável por sua divulgação. Em seu trabalho, os profissionais da imprensa não apenas reportam a realidade, tal como ela é. Eles enquadram, moldam e a apresentam de uma forma específica. Como explica o sociólogo Erving Goffman, no clássico Frame Analysis: An Essay on the Organization of Experience (Harvard University Press, 1974; publicado no Brasil em 2012, pela Editora Vozes), framing se refere aos esquemas de interpretação que usamos para dar sentido a eventos, experiências e interações sociais. É por meio da organização e da interpretação do mundo, norteadas por diferentes molduras”, que os eventos ganham significado.

No caso dos jornais, diferentes frames – e, portanto, diferentes filtros e significados – podem ser obtidos com a seleção deste ou daquele evento; da ênfase em certos aspectos de um acontecimento; com o uso de determinada linguagem, vocabulário e metáforas; com a atribuição de responsabilidade (o “culpado/vilão” e o “herói/vítima”); com a legitimação ou deslegitimação de atores; ou ainda, com a construção de narrativas. Todo dia, escolhe-se o que contar, o que destacar, o que omitir, como contar, quando contar e para quem contar. E, como vimos nesse texto, nenhuma dessas escolhas é fortuita.

 

Publicado em: 21/8/2025

* Tatiana Teixeira é consultora associada do Unity Global Institute e U.S. State Department Alumna (SUSI 2025). Esteve nos EUA em junho e julho de 2025 para participar do curso de American Politics and Political Thought, realizado no âmbito da Civic Initiative, do Donahue Institute, vinculado à Universidade de Massachusetts Amherst (UMass). O programa Study of the United States Institutes (SUSI 2025) é patrocinado pelo Departamento de Estado dos EUA e administrado pela Universidade de Montana (UM). Trabalhos decorrentes do programa ou outros relacionados aos Estados Unidos são considerados de totais autonomia, iniciativa e responsabilidade da pesquisadora e não representam qualquer endosso ou adesão a quaisquer políticas e agendas por parte do governo americano atual, ou anteriores. Contato: tatianat19@hotmail.com

 

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