A agência de notícias Associated Press (AP) revelou, em meados de julho, o fechamento do “Acordo de Troca de Informações entre os Centros de Serviços Medicare e Medicaid e o Departamento de Segurança Interna (DHS)”. A medida, que não foi anunciada “publicamente”, teria sido assinada no dia 14 do mês passado. Com duração prevista de dois meses, pode ser renovada por períodos consecutivos. No texto, autoriza-se a força policial americana para migração (Immigration and Customs Enforcement) a ter acesso aos dados dos cerca de 79 milhões de beneficiários cadastrados no Medicaid, para “receber informações sobre a identidade e a localização de aliens identificados pela ICE”. Em Nevada, por exemplo, na região Oeste, o acordo pode ter um impacto dramático. Além de ser o estado com a maior população de imigrantes sem documentos per capita dos EUA, é o que tem a maior proporção de famílias com status misto em todo o país e cerca de 130.000 residentes permanentes legais.
Mantido com recursos federais e estaduais, esse programa oferece atendimento de saúde para as pessoas mais pobres e vulneráveis, incluindo milhões de crianças. Embora os imigrantes em condição ilegal nos Estados Unidos não sejam elegíveis para o Medicaid em nível federal, todos os estados são obrigados, por lei, a oferecer-lhes cobertura de emergência no âmbito do programa. Além disso, 14 estados e o Distrito de Columbia oferecem cobertura para crianças elegíveis, independentemente do status de imigração, e sete estados e o Distrito de Columbia, para adultos.
De acordo com a Kaiser Family Foundation (KFF), “os cuidados de emergência para pacientes sem documentos representaram menos de 1% dos gastos do Medicaid entre 2017 e 2023”. A percepção da sociedade sobre o tema é bem diferente. Segundo a mesma fonte, mais da metade dos americanos e mesmo dos imigrantes diz não ter certeza, ou diz acreditar, erroneamente, que a maioria dos imigrantes nos EUA é elegível para se inscrever em programas federais de seguro-saúde, como o Medicaid. Um engano explorado e estimulado de forma vigorosa por aliados e políticos da base MAGA (Make America Great Again) e também usado para justificar os cortes em benefícios sociais no megapacote orçamentário de Trump, a chamada Uma Lei Grande e Bonita (One Big Beautiful Bill).
Ao serem questionados a esse respeito em entrevistas, representantes do governo de Donald Trump têm-se referido à iniciativa como uma maneira de “identificar os imigrantes em situação irregular” que estejam utilizando tais recursos públicos. Nas palavras do porta-voz do Departamento de Saúde e Serviços Humanos (DHHS), Andrew Nixon, em declaração dada em junho, “Não estamos apenas protegendo o dinheiro dos contribuintes — estamos restaurando a credibilidade de um dos programas mais importantes dos Estados Unidos”. Um dado oficial esvazia o argumento: de acordo com números da Comissão de Sentenças dos EUA (U.S. Commission on Sentencing) referentes ao ano fiscal de 2023, mais de 90% das pessoas que cometeram fraude em benefícios sociais eram cidadãos americanos. O discurso de “garantir o bom uso do dinheiro do contribuinte americano” e “evitar desperdícios, fraudes e abusos sistêmicos” também é desmontado, sem dificuldade, ante o teor explícito do documento, o qual, na prática, vai-se traduzir em deportação.
Entre as informações salvas no sistema, estão dados médicos confidenciais (como registros detalhados sobre diagnósticos médicos e procedimentos), endereço de residência, data de nascimento, etnia/raça e Social Security number (SSN, algo próximo do CPF brasileiro). No caso deste último, além de cidadãos americanos, residentes permanentes portadores de green card, trabalhadores temporários (com visto de trabalho de duração limitada) e estudantes de intercâmbio autorizados a trabalhar no campus da instituição de ensino também podem (e devem) ter um SSN. Os três grupos mencionados têm sido alvo direto do endurecimento das políticas migratórias desde o início do governo Trump 2.0.
E assim Trump vai cercando e imobilizando as pessoas pelo terror. Além do medo de serem presas no trabalho, na escola, na igreja, ou durante o comparecimento a audiências judiciais (ironicamente, para regularizar sua situação no país), esses migrantes deixarão de procurar a emergência médica, mesmo que sua vida ou a de um filho dependa desse atendimento.
Durante o governo de Joe Biden (2021-2025), sete estados — Califórnia, Nova York, Washington, Oregon, Illinois, Minnesota e Colorado, todos com governadores democratas — passaram a permitir a cobertura integral de saúde de quem não é cidadão americano em seus programas Medicaid, mas sem buscar a contrapartida federal. Em 1º de julho, 20 estados liderados pela Califórnia (os já citados, mais Arizona, Connecticut, Delaware, Havaí, Massachusetts, Maine, Maryland, Michigan, Nevada, New Jersey, New Mexico, Rhode Island e Vermont) entraram na Justiça contra o governo federal, alegando violação do direito à privacidade no âmbito da saúde.
Em termos de alcance e virulência, além de inconstitucional, essa busca de dados de saúde nos estados é inédita no país.
Nesse mesmo dia, foi aprovado no Senado o Big Beautiful Bill, projeto de lei orçamentária que prevê gigantescos cortes de recursos em inúmeros benefícios sociais. O texto, sancionado por Trump em 4 de julho, inclui um corte de US$ 1 trilhão no financiamento do Medicaid e do Programa de Seguro-Saúde Infantil (CHIP) nos próximos dez anos. Cerca de 11 milhões de americanos e centenas de hospitais rurais serão afetados. A lei também retira US$ 186 bilhões em financiamento do Programa de Assistência Nutricional Suplementar (SNAP, antigo Food Stamps), que beneficia cinco milhões de adultos e crianças. Na direção oposta, destina US$ 108 bilhões para iniciativas de fiscalização da imigração, como a continuação da construção do muro na fronteira com o México e de novos centros de detenção de imigrantes, assim como operações logísticas do DHS e do Departamento de Justiça.
Vigilância permanente e sem precedentes
Em abril deste ano, as repórteres Makena Kelly e Vittoria Elliott já haviam publicado uma matéria na revista americana WIRED, noticiando o plano do Departamento de Eficiência Governamental (DOGE, na sigla em inglês), então chefiado pelo bilionário Elon Musk, de compilar os dados do Departamento de Segurança Interna, da Administração da Previdência Social e da Receita Federal (IRS), o que “poderia criar uma ferramenta de vigilância de alcance sem precedentes” e uma expansão ilimitada da autoridade executiva. Ou seja, um sistema de monitoramento com fins punitivos muito mais eficaz para identificar, vigiar e deportar imigrantes do que a espionagem implementada, por exemplo, pela Agência de Segurança Nacional (NSA) – tanto de cidadãos americanos, quanto de cidadãos e líderes estrangeiros – no pós-11/9. A “necessidade” de acesso a essas informações, por parte do DOGE, foi confirmada pelaSuprema Corte no início de junho.
Segundo Makena e Vittoria, um banco de dados nessa escala, com esse objetivo e que inclui dados biométricos confidenciais é algo sem precedentes nos Estados Unidos. Especialistas ouvidos pelas jornalistas advertem sobre a violação de privacidade e dos direitos civis a que estarão expostos “cidadãos, trabalhadores estrangeiros certificados e imigrantes sem documentos”. E não é por falta de legislação protetiva.
Criada na esteira do escândalo do Watergate, a Lei de Privacidade (Privacy Act), de 1974, estabelece como seus princípios centrais que “os indivíduos têm o direito de controlar seus dados pessoais; as agências governamentais estão sujeitas a restrições quanto à divulgação desses dados; e medidas rigorosas de responsabilização são aplicadas aos responsáveis pelo gerenciamento desses dados”. No corpo da lei, há 12 exceções, as quais permitem que um indivíduo tenha seus dados compartilhados por um determinado órgão federal sem seu consentimento. Uma dessas particularidades está prevista, por exemplo, “Para funcionários ou empregados da agência que precisam do registro [dos dados, N.A.] para realizar suas funções”. É com a possibilidade dessa (ampla) margem interpretativa na aplicação da legislação que o governo Trump vem atuando – nessa e em outras situações.
Cabe, também, uma observação: embora a Constituição dos Estados Unidos não mencione o assunto explicitamente, a Suprema Corte já interpretou várias emendas como uma confirmação do direito à privacidade em certos contextos. Entre elas, estão a Primeira, Terceira, Quarta, Quinta e Nona Emendas, bem como a Cláusula do Devido Processo Legal da 14ª Emenda. Disso tratarei em um outro texto, trazendo, também, as exceções na lei de 1974.
Ainda sobre o compartilhamento ostensivo de dados confidenciais entre as agências, a situação é, historicamente, incomum. E tem relação com o funcionamento e a cultura organizacional de cada agência, bureau e departamento do setor público nos EUA. Em geral, as instituições governamentais mantinham uma rotina de atuar em sua área e esfera específicas, sem invadir os limites do outro órgão. Isso começou a mudar após o 11 de Setembro e a divulgação do The 9/11 Commission Report: Final Report of the National Commission on Terrorist Attacks Upon the United States (ou 9/11 Report).
Produzido por uma comissão independente, o documento expôs as lacunas na segurança que possibilitaram os ataques em solo nacional. No texto, seus autores identificam falhas operacionais, como: problemas de capacidades e de gestão; e a falta de comunicação e interlocução interagências, a qual se materializa no não compartilhamento de informação de Inteligência (Intel) obtida por suas equipes e recursos. Cada agência quer e prefere brilhar sozinha. Isso dá visibilidade, reforça sua relevância para o país e, eventualmente, justifica uma maior fatia no orçamento do governo federal. Em seu relatório, a Comissão do 11 de Setembro recomendou uma “união de propósitos e esforços” que inclui o compartilhamento de informações entre agências, a nomeação de um Diretor Nacional de Inteligência, o desenvolvimento de um Centro Nacional de Terrorismo e uma organização aprimorada das defesas internas dos Estados Unidos.
Mudar uma cultura organizacional é um processo que leva tempo e costuma acontecer de forma gradativa. Embora seja difícil saber qual é a condição nas instituições públicas americanas desde o 11/9, observa-se, com o governo Trump, a intensificação desse movimento, sobretudo, sob a prerrogativa guarda-chuva de preocupação com a segurança nacional. Mas o que está em jogo aqui?
Com os dados vinculados ao social security number (SSN) e ao Medicaid, o governo espera identificar, mais fácil e rapidamente, quem está em situação clandestina no país, ou quem não atende aos critérios (inconstitucionais, eu reforço) para nacionalidade e cidadania. Quem nasceu nos EUA, mas é filho de pais com status irregular, corre o risco de perder a cidadania e pode ser deportado. Com isso, famílias inteiras – já integradas à comunidade local, com uma vida estruturada nos EUA e sem vínculos e empregos na terra natal – poderão ser encontradas. Uma análise feita pelo American Immigration Council e divulgada em fevereiro deste ano relata que “cerca de 4,1 milhões de crianças cidadãs americanas vivem com um dos pais sem documentos”.
Contribuição latina e americanidade
Em todas as cidades por onde passei nos Estados Unidos neste último mês e meio – entre elas Amherst, Boston, Nova York, Charlottesville e Washington, D.C. –, estabelecimentos de diferentes setores da economia têm placas bilíngues, em inglês e espanhol. E não são placas para turistas, como o “bem-vindo” em vários idiomas pendurado no Chelsea Market, em Nova York. Elas são para funcionários, pessoas que vivem e trabalham nos Estados Unidos. O que elas comunicam é uma realidade que o atual governo e sua base de extrema direita querem apagar. Mas é tarde demais para isso.
O site do órgão oficial responsável pelo censo nos EUA, o United States Census Bureau, informa que a população total do país é de pouco mais de 342,1 milhões de pessoas. De acordo com a mesma fonte, até 1º de julho de 2023, o número daqueles que se autoidentificavam como hispânicos/latinos atingia 65,2 milhões (19,5%), com uma média etária de 31 anos, consolidando-se como a maior minoria racial/étnica do país. Dos 50 estados americanos, 13 registravam mais de um milhão de residentes hispânicos até a mesma data: Arizona, Califórnia, Carolina do Norte, Colorado, Flórida, Geórgia, Illinois, Nova Jersey, Novo México, Pensilvânia, Texas e Washington.
Segundo o Censo americano, até 2050, a parcela branca e não-hispânica da população deixará de ser maioria no país, pela primeira vez. Os latinos devem chegar a algo em torno de 25% da população e, nessa década, os asiáticos devem superar os latinos como maior grupo de imigrantes considerados por raça/etnicidade. Ainda é cedo para saber se o alcance das políticas trumpistas será contundente o suficiente para conseguir reverter essa tendência.
Produzido pelo Centro de Estudos da Saúde e Cultura Latinas, da Universidade da Califórnia/Los Angeles (UCLA), e pelo Centro para Previsão e Pesquisa Econômica, da Universidade Luterana da Califórnia, o relatório anual “U.S. Latino GDP” mostra que “a produção econômica total, ou Produto Interno Bruto, dos latinos nos Estados Unidos atingiu um recorde, chegando a US$ 4,1 trilhões em 2023”. Mesmo na pandemia da covid-19, acrescenta o documento, o PIB latino nos EUA teve um desempenho notável, com “o crescimento mais rápido entre as principais economias, incluindo a China”. Entre outros aspectos indicados no relatório, chamam atenção os números referentes à educação (latinos tiveram mais avanços em educação do que não latinos no período de 2010 a 2023); ao consumo (em 2023, os latinos gastaram US$ 2,7 trilhões no país); e ao crescimento do PIB nacional (desde 2019, latinos responderam por 30,6% do PIB dos EUA).
O levantamento do American Immigration Council também ilustra e reforça o argumento sobre a contribuição positiva dos latinos para a economia americana. Mesmo em situação irregular, esses imigrantes pagaram US$ 89,8 bilhões em impostos federais, estaduais e locais em 2023, detendo US$ 299 bilhões em poder de compra. Ajudam a aliviar a escassez de funcionários em setores como a saúde e trabalham cada vez mais como autônomos ou empreendedores, sendo eles mesmos os que oferecem oportunidades de emprego. Esses trabalhadores se concentram, sobretudo, na construção civil e no setor de serviços, em especial na área de alimentação (preparação e entrega, por exemplo), limpeza e manutenção de edifícios e terrenos, e agricultura.
Não há como mensurar, ainda, o potencial impacto dessa transformação no perfil demográfico do país, mas é possível antecipar que afetará o entendimento do que é “ser americano”. Essa é, aliás, a pergunta fundamental, não apenas para estrangeiros, mas para os próprios americanos – cidadãos, acadêmicos, políticos.
A noção dos critérios de pertencimento a essa nação varia muito. Depende de quem fala; de sua origem, preconceitos e visão de mundo; do posicionamento político; de onde se vive e da comunidade em que se está inserido; e das conexões estabelecidas, sobretudo, aquelas construídas na convivência com pessoas de outros países. O debate é amplo na literatura acadêmica a respeito do tema – Alexis de Tocqueville, Seymour Martin Lipset, Sacvan Bercovitch, David Hollinger, Eric Foner, Jill Lepore, W.E. Du Bois, Frederick Douglass, Michael Walzer, Arthur Schlesinger Jr., Robert Bellah e Samuel Huntington são alguns dos autores basilares – e está longe de se esgotar. Aqui, do mesmo modo, expõe-se repertório, trajetória e crenças dos estudiosos da identidade americana. Qualquer que seja sua esfera, essa não é uma discussão isenta e apolítica, e é imperioso ter isso claro desde o ponto de partida.
Publicado em 8/8/2025
* Tatiana Teixeira é consultora associada do Unity Global Institute e U.S. State Department Alumna (SUSI 2025). Esteve nos EUA em junho e julho de 2025 para participar do curso de American Politics and Political Thought, realizado no âmbito da Civic Initiative, do Donahue Institute, vinculado à Universidade de Massachusetts Amherst (UMass). O programa Study of the United States Institutes (SUSI 2025) é patrocinado pelo Departamento de Estado dos EUA e administrado pela Universidade de Montana (UM). Trabalhos decorrentes do programa ou outros relacionados aos Estados Unidos são considerados de totais autonomia, iniciativa e responsabilidade da pesquisadora e não representam qualquer endosso ou adesão a quaisquer políticas e agendas por parte do governo americano atual, ou anteriores. Contato: tatianat19@hotmail.com.